Em ações de usucapião, frequente é a intervenção da municipalidade, objetivando impugnar a pretensão dos autores, sob o argumento de que a área usucapienda estaria em desacordo com a legislação urbanística local ou mesmo porque a usucapião recairia sobre loteamento irregular.
Ocorre que o STF, iniciando o julgamento do Recurso Extraordinário nº 422.349/RS, indicou que normas municipais não têm o condão de obstar a usucapião urbana, prevista no at. 183 da CF/88, quando preenchidos os requisitos para a prescrição aquisitiva. A transcrição do informativo nº 772/2014 do STF, no qual está assentada a posição do Relator, traz com clareza o posicionamento:
“(…)No mérito, o Ministro Dias Toffoli (relator) proveu o recurso extraordinário para reconhecer aos autores o domínio sobre o imóvel, dada a implementação da usucapião urbana prevista no art. 183 da CF, no que foi acompanhado pelos Ministros Teori Zavascki e Rosa Weber. Afirmou que, para o acolhimento da pretensão, bastaria o preenchimento dos requisitos exigidos pelo texto constitucional, de modo que não se poderia erigir obstáculo, de índole infraconstitucional, para impedir que se aperfeiçoasse, em favor de parte interessada, o modo originário de aquisição de propriedade. Consignou que os recorrentes efetivamente preencheriam os requisitos constitucionais formais. Desse modo, não seria possível rejeitar, pela interpretação de normas hierarquicamente inferiores à Constituição, a pretensão deduzida com base em norma constitucional.O Min. Dias Toffoli ressaltou, ademais, que o imóvel estaria perfeitamente localizado dentro da área urbana do município. Além disso, o poder público cobraria sobre a propriedade os tributos competentes. Ademais, não se poderia descurar da circunstância de que a presente modalidade de aquisição da propriedade imobiliária fora incluída pela Constituição como forma de permitir o acesso dos mais humildes a melhores condições de moradia, bem como para fazer valer o respeito à dignidade da pessoa humana, elevado a um dos fundamentos da República (CF, art. 1º, III), fato que, inegavelmente, conduziria ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, além de garantir o bem-estar de seus habitantes (CF, art. 182, “caput”). Assim, a eventual irregularidade do loteamento em que localizado o imóvel objeto da usucapião ou a desconformidade de sua metragem com normas e posturas municipais que disciplinariam os módulos urbanos em sua respectiva área territorial não poderiam obstar a implementação de direito constitucionalmente assegurado a quem preenchesse os requisitos exigidos pela Constituição, especialmente por se tratar de modo originário de aquisição da propriedade. O relator afastou a necessidade de se declarar a inconstitucionalidade da norma municipal e, diante da relevância da questão do ponto de vista social e jurídico, propôs o reconhecimento da repercussão geral do tema, com a aprovação da seguinte tese: “preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por norma municipal que estabeleça módulos urbanos na respectiva área nem pela existência de irregularidades no loteamento em que situado o imóvel(…)”
O caso, embora não tenha recebido veredito definitivo da Corte Suprema, reproduz tema recorrente no Judiciário, inclusive no Tribunal de Justiça de Pernambuco, que, a priori, externou claro posicionamento garantista em sua decisão, conforme o aresto abaixo transcrito:
APELAÇÃO. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. USUCAPIÃO EM ZONA ESPECIAL DE INTERESSE SOCIAL (ZEIS). LOTEAMENTO IRREGULAR – INVASÃO COLETIVA – QUE NÃO OBSTA A USUCAPIÃO INDIVIDUAL QUANDO PREENCHIDOS OS REQUISITOS CONSTITUCIONAIS. RECURSO PROVIDO. SENTENÇA ANULADA. 1. É possível a usucapião individual urbana ainda que a área usucapienda esteja situada em Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), fruto de invasão coletiva, por respeito ao direito fundamental da dignidade da pessoa humana, da moradia, da propriedade privada e da inafastabilidade da jurisdição. 2. Pois, o art. 183, CF, é uma norma constitucional de eficácia plena e exige apenas a posse mansa e pacífica em área ou edificação urbana de até 250m2, com ânimo de dono e utilizada para moradia pelo prazo de cinco anos, desde que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. 3. Assim sendo, a usucapião coletiva prevista no art. 10 da Lei Federal 10.257/01 (Estatuto da Cidade) não poderia limitar a usucapião individual prevista no art. 183, CF, em face da hierarquia das normas. 4. Nessa senda, a usucapião coletiva é uma alternativa de efetivar o direito constitucional à moradia através de demanda coletiva, o que não obsta a usucapião individual quando preenchidos os requisitos constitucionais. (TJPE, AC 274031-6, 1ª CC, Rel. para o Acórdão Des. André Guimarães, j. 03/12/2013. DJ 15/01/2014)
Apesar de tratar do conflito em concreto entre o Estatuto da Cidade (legislação federal) e a Constituição, o acórdão do TJPE já demonstra a inclinação jurisprudencial pela preservação da normatividade do art. 183 do CF/88, reconhecendo-lhe eficácia plena, de forma que o direito à usucapião urbana, independentemente de regramento infraconstitucional sobre limitações urbanísticas, estará realizado, desde que comprovada a posse mansa e pacífica de edificação urbana de até 250m².
Resta, então, aguardar o posicionamento definitivo do STF, do qual se espera a confirmação da aplicabilidade direta do art. 183 da CF/88, na linha defendida por Konrad Hesse, em sua obra “A Força Normativa da Contituição”.